O campo de estudos sobre Ações Afirmativas na educação superior pública vem se consolidando nos últimos anos, de modo que já não é mais possível compreender as políticas para a educação superior nem os estudos de perfil e trajetória dos estudantes sem passar pela democratização do acesso através dessas ações. O debate sobre o que se convencionou nomear como “cotas” talvez seja o aspecto da educação superior mais conhecido pelo público que não acessa diretamente a universidade e possui uma dimensão pública que outras lutas educacionais dificilmente alcançam hoje. Assim, falar em Ações Afirmativas na Educação Superior não é falar de um nicho isolado na política educacional, mas implica compreender que esta política tem movimentado e redefinido todas as relações dentro da universidade, seja nas políticas de permanência, na emergência de coletivos estudantis, nos tensionamentos e mudanças curriculares e finalmente na mudança da produção do conhecimento. A Política Carolina Maria de Jesus, que reflete um importante posicionamento institucional, decorre de várias maneiras das primeiras Ações Afirmativas implementadas na Unifesp.
A partir de análise das atas do Conselho Universitário e de pesquisas acadêmicas (Tobias, 2014) pode-se afirmar que na Unifesp as ações afirmativas foram fruto de um debate interno da comunidade acadêmica. Este debate foi disparado em 2003 pela professora Dra. Helena Nader, então pró-reitora de graduação como resposta à Lei 10.558, de 13 de novembro de 2002, que criou o Programa Diversidade na Universidade. A professora Helena foi coordenadora do Grupo de Trabalho incumbido de sustentar o debate sobre ações afirmativas para pessoas negras na educação superior na universidade. O GT teve participação do Dr. Hélio Santos, fundador do Conselho Negro em São Paulo. Em 2003 foi realizado um Seminário sobre Ações Afirmativas na Escola Paulista de Medicina com a presença de juristas, militantes do movimento negro e reitores(as) das IES que já haviam implementado as Ações Afirmativas para ingresso da população negra na graduação como a UERJ e a Uneb. Neste Seminário estiveram presentes a Dra Nicéia Freire, Dr. Valdélio Santos Silva, Dr. Hédio Silva Júnior, Senador Paulo Paim, Dr. João Carlos Nogueira, Dr. Roberto Martins, além de representantes de outras entidades ligadas à Educação Superior.
A proposta de cotas na Unifesp foi apresentada na reunião do Consu em 10 de março de 2004 sendo votada e aprovada na reunião seguinte em 14 de abril. Na resolução do Consu que aprovou o programa de cotas da Unifesp lê-se: “O sistema de cotas deverá ser avaliado anualmente pela Comissão Permanente de Vestibular e submetido ao Conselho Universitário para sua prorrogação”. As cotas foram aprovadas e se mantiveram inicialmente sob o fio da navalha. Para vencer os argumentos internos contrários às cotas (a proposta foi aprovada com 31 votos a favor, 15 contra e 7 abstenções) optou-se por não redistribuir as vagas já existentes, mas aumentá-las em 10%, reservando essas novas vagas para estudantes pretos, pardos e indígenas egressos da escola pública. Para enfrentar o argumento de que as cotas rebaixariam o desempenho da universidade, a cada ano, os pró-reitores de graduação deveriam apresentar relatórios de desempenho dos estudantes cotistas, e a cada ano, as Ações Afirmativas corriam o risco de revogação. Avaliações de desempenho mostraram que os ingressantes via cotas desempenhavam como seus colegas de turma, esse fato diminui as resistências e o programa de reserva de vagas seguiu sendo renovado até 2012 quando a Unifesp iniciou a implementação da Lei 12.711/2012 para o vestibular do ano seguinte. A partir de então, a instituição segue a ordenação federal da lei de cotas.
A demonstração de que ingressantes via ações afirmativas têm um rendimento semelhante aos ingressantes do sistema universal serviria como justificativa ou avaliação das cotas. O que coloca uma questão: caso não desempenhassem, seria legítimo descontinuar o programa? O rendimento dos não-cotistas também seria avaliado com esse propósito? Recomendar-se-ia a elaboração do “perfil do aluno não cotista” que teve um desempenho ruim? Apesar da premissa bastante equivocada, a exigência de dados de desempenho para estudantes cotistas para a continuidade do programa, serviu para o fortalecimento das AAs. Maria Aparecida Silva Bento, em texto de 2005, utiliza os dados iniciais produzidos pela Uerj para se contrapor aos argumentos de que o ingresso de cotistas iria rebaixar a qualidade da educação pública, não antes sem problematizar a premissa questionando os parâmetros de qualidade medidos pelo desempenho dos estudantes. A autora também cita, nesse texto, a experiência recém aprovada da Unifesp.
O modelo de reserva da Unifesp repetiu o modelo da Uneb e das estaduais do Rio de Janeiro, aliando a reserva para estudantes da escola pública ao recorte racial, no entanto, a destinação de 10% das vagas foi menor que as demais pioneiras. Devido ao não preenchimento de algumas dessas vagas, ao longo dos anos, a Unifesp direcionou vagas remanescentes a outros estudantes egressos da escola pública.
A Unifesp tem o mérito inequívoco de ser a primeira universidade no estado de São Paulo a implementar Ações Afirmativas. Quando a Lei 12.711/2012 foi implementada a Unifesp já contava com alguns anos de experiência na gestão de matrículas, direcionando os estudantes com notas suficientes para o ingresso nas vagas universais e liberando novas vagas para ingressantes via reserva. A segunda universidade pública em território paulista a implementar AAs também foi uma instituição federal, a Universidade Federal de São Carlos. Das IES estaduais paulistas a Unesp foi a primeira a adotar Ações Afirmativas na graduação em 2014 - dez anos depois da Unifesp - em modelo semelhante ao da Lei 12.711/2012 reservando vagas para estudantes de escola pública e pessoas negras, no entanto, não incluiu a reserva para baixa renda.
Não é exagero afirmar que a expansão da Unifesp e as profundas transformações na identidade institucional daí decorrentes ocorreram pari passu à adoção de ações afirmativas. O mesmo CONSU que discutiu a expansão para o Campus Baixada Santista discutiu as Ações Afirmativas para a população negra. O campus de Osasco iniciou suas atividades no mesmo ano da aprovação da Lei 12.711/2012 e a adoção da lei foi um tema constante nas reuniões da Congregação daquele Campus. Assim, a Unifesp que se expande já o faz sob outras premissas de educação superior, afastando-se da premissa elitista (Rosa, Cruz e Céspedes, 2020) que lhe caracterizava.
Ao longo dos anos, as pressões por democratização do acesso ganharam terreno e outros grupos foram incluídos nos programas de reserva de vagas: pessoas com deficiência, refugiados (as) apátridas e portadores de visto humanitário, população trans (transgêneros, transexuais e travestis). Em 2021 as cotas para população negra e indígena chegam à pós-graduação e em 2024 é realizada a primeira seleção especial para indígenas na graduação no Campus Baixada Santista .
A política Carolina Maria de Jesus tem como embasamento legal a Lei nº 10.639/2003 e a Lei nº 11.645/2008, que estabelecem a obrigatoriedade da inclusão, no currículo oficial da Rede de Ensino, da temática da história e cultura afro-brasileira e indígena. Além disso, fundamenta-se no Estatuto da Igualdade Racial, bem como nas Leis nº 12.711/2012 e nº 13.409/2016, que instituíram a reserva de vagas para pessoas autodeclaradas pretas, pardas, indígenas e para pessoas com deficiência em instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação. As ações afirmativas, portanto, influenciaram diretamente a reorganização acadêmica e institucional da Unifesp. Esta reorganização começa a ser sentida nos PPPC como mostrado por Silva (2025). Além disso, a Política também já é citada em Trabalhos de Conclusão de Curso, nas áreas de Ciências Sociais (Oliveira, 2024); Enfermagem (Carvalho, 2024);Educação Física (Flores, 2023); Terapia Ocupacional (Santana, 2024) entre outros.